quinta-feira, outubro 28, 2004

As mulheres não gostam de foder - Parte 2

O Ministério Público decidiu abrir um inquérito ao caso de um livro com título alegadamente obsceno que foi exposto, há cerca de mês e meio, na montra de uma livraria de um centro comercial de Viseu.

Após algumas queixas, a PSP de Viseu decidiu aconselhar os proprietários da livraria Polvo a retirarem da montra o livro «As Mulheres Não Gostam de Foder», um ensaio sexual em banda desenhada.

O Ministério Público podia ter arquivado o caso, mas decidiu levar o assunto por diante. Para avançar, o delegado do procurador de Viseu, baseou-se numa lei de 1976 que proíbe a exposição em montras de qualquer produto obscenô.

A decisão surpreendeu os dois proprietários da livraria. «Estou boquiaberto. Só posso dizer que estamos a regredir», disse à TSF um dos sócios, Jorge Deodato.

Em Setembro, uma denuncia levou a PSP de Viseu até à livraria Polvo aconselhando a retirada de determinado livro, que podia ser considerado ofensivo. Os agentes levaram o livro mas o caso não ficou esquecido.

A polémica serviu para fazer de «as mulheres não gostam de foder», uma pequena banda desenhada cómica que custa 2 euros e meio, um sucesso. De tal forma que o autor, Alvarez Rabo, vai estar este fim-de-semana em Viseu.


quarta-feira, outubro 27, 2004

Antes de Anoitecer

Tem sido um filme levado ao colo pela crítica cinematográfica, e não só, por permitir a abertura de um “espaço de encantamento”, pelo “jogo de subtileza” aí presente, por constituir-se como um momento propício para “o espectador ser assaltado pelos seus fantasmas”, etc.
Envolto num envelope tão prendado, ao abri-lo e ao ver-se o filme inserto fica-se com a impressão de que a crítica, realmente, habita um universo muito singular, ensimesmado quanto baste, pois consegue descobrir subtileza onde existe a inanidade quase total, confundir encantamento com corriqueiro, e transpor os seus fantasmas pessoais para os espectadores.
“Antes de Anoitecer” é um filme passado quase em tempo real entre um par que se reencontra nove anos depois de se ter separado em Viena, com promessas mútuas de rápido reencontro mas que os desígnios insondáveis do destino entretanto impediram (onde é que eu já vi isto?). Reencontro cumprido, percorrem Paris recordando Viena, carpindo mágoas sobre as vicissitudes das suas vidas amorosas, divagando acerca da impotência dos homens franceses, por contraponto à tusa constante dos americanos.
No fim, Julie Delpi canta e encanta, Ethan Hawke vê a hora de apanhar o avião aproximar-se a contragosto e descem subitamente as cortinas sobre a história, concedendo-se ao espectador, ao jeito do você decide, o poder de imaginar um enredo feliz de ansiada união ou infeliz de repetida separação.
Ironicamente, a sensação que fica no final é a de que aqueles dois nunca chegam a lado nenhum, antes andam constantemente a engonhar, sendo aquilo que se costumar designar por uns grandes empata-fodas. Cá para mim, Julie Delpi só tem garganta e Ethan Hawke afinal é francês.

terça-feira, outubro 26, 2004

O poder dos pesadelos

A BBC iniciou a transmissão de uma série de três documentários sobre o processo político que conduziu ao sistema de poder e de confrontações a que assistimos hoje no mundo. O documentário chama-se The Power of Nightmares e a sua ideia base é a de que o poder actual está intimamente relacionado com a criação de mitos e fantasmas, formas de convencer as pessoas de ameaças que na realidade não existem. Confesso que tenho algumas dúvidas em relação ao modo como a história é contada. No entanto, o trabalho merece atenção. O autor segue duas histórias. A primeira começa com Leo Strauss, filósofo que deu aulas na escola de Chicago durante os anos 50. A segunda, com Sayyid Qutb, um teórico egípcio que estudou nos EUA e que se tornou, mais tarde, o ideólogo de associações fundamentalistas que lutavam contra o Egipto secular pós-independência. Strauss era um anti-liberal, anti-individualista que desejava que os EUA seguissem um modelo social colectivista e comunitário, assente na religião e em princípios conservadores, e alimentado por mitos que atribuíam à América o papel de democratizador do mundo. Strauss foi professor e criou uma espécie de escol. O seu escol esteve sempre ligado a uma facção minoritária da extrema-direita do partido republicano. Com a chegada de Reagan ao poder, os seguidores de Strauss foram-se impondo, ficando conhecidos, entre outras coisas, por fabricar relatórios que atribuíam à União Soviética um poder militar que esta na realidade não possuía. Não é difícil perceber quem são estes homens, hoje denominados por neo-conservadores: Wolfowitz (um dos alunos de Strauss), Rumsfeld, Cheney, entre outros menos conhecidos. O documentário mostra imagens de discursos de Wolfowitz e Rumsfelf realizados nos anos setenta. Se colocarmos Al-Qaeda, ou Saddam, no lugar de União Soviética reconhecemos facilmente que os discursos são muito similares: a mesma forma simplista de falar no bem e no mal, a mesma concepção justiceira da América. A única diferença, significativa, é que a União Soviética era uma realidade mais palpável do que o terrorismo difuso, sem cara e sem Estado, que hoje se tornou no grande inimigo do ocidente. Serão estes homens que, ainda nos anos oitenta, vão levar os EUA a unir-se aos mais primários movimentos islâmicos, para lutar contra o domínio soviético no Afeganistão. Na outra história vemos como o fundamentalismo islâmico se alimentou do ódio aos regimes que dominavam os novos estados independentes no Médio Oriente governados por marionetes do ocidente. Dois casos emblemáticos. O Xá do Irão, que caiu em 1979 às mãos da revolução islâmica de Khomeni, e o caso de Sadat, no Egipto. O fundamentalismo islâmico transformou-se, aos poucos, numa força de defesa dos oprimidos pelas injustiças das novas economias liberais. A sua solução: voltar às interpretações mais rígidas e literais do islão e esmagar o individualismo. Também eles criaram um grande fantasma: o ocidente egoísta que desvia os homens da religião, que transforma as mulheres, que cria mil encantos que destróem a herança islâmica. As histórias são demasiado centradas numa concepção idealista do mundo e da acção humana, pouco articuladas com o processo económico e o saque aos recursos energéticos. Porém, estas genealogias ideológicas do presente geo-político não deixam de ser importantes para acrescentar mais algumas peças ao puzzle.

quinta-feira, outubro 21, 2004

O sistema

Alguns sócios do Benfica tiveram a ideia peregrina de processar o árbitro do último jogo contra o Porto. O próximo passo será processar os jogadores, os treinadores, os médicos. Tanta fúria mal direccionada. O nível do debate futebolístico em Portugal voltou a descer a níveis impensáveis. A escola, reconheça-se, é a do Porto, mas os dirigentes do Benfica seguem fielmente a cartilha, conseguindo, por vezes, bater recordes na arte da sarjeta. É lamentável que ninguém conseguisse tirar ilações do sucedido neste último jogo. É evidente que o Benfica foi prejudicado. O golo não assinalado é um erro objectivo, diferente das intermináveis e subjectivas discussões sobre a intensidade das faltas. Um clube foi prejudicado, o público foi enganado, a questão tem consequências económicas. O que fazer? A resposta está na criação de um novo sistema. Dois, ou três técnicos conhecedores das regras do futebol em comunicação com o árbitro, umas quantas televisões e um ou outro programa informático. Decisão em breves segundos: não quebra o ritmo de jogo. Estou plenamente convencido que, embora o sistema seja ineficaz para medir a existência de algumas faltas, podia ser decisivo para avaliar se a falta foi realmente cometida dentro da área e, mais importante, se o jogador se encontra, ou não, em situação de fora de jogo. Para além, obviamente, de situações idênticas à que se passou neste último domingo na Luz. Se fossemos mais longe, seria ainda útil para avaliar questões disciplinares: se houve, ou não, uma agressão, se o jogador simulou, ou não, uma falta.

quarta-feira, outubro 20, 2004

Académico de Viseu - Fim à Vista?

Só o facto de a assembleia geral do próximo dia 24 contemplar na ordem de trabalhos a possibilidade concreta de acabar com o Clube Académico de Futebol e fazer renascer o clube com outro nome, em consequência da falta de uma direcção e de 300.000 euros para resolver os problemas de tesouraria do clube, é preocupante para aqueles que simpatizam com este clube quase centenário, e que detém a competir pelo seu emblema mais de 500 jovens em diversas modalidades (futebol, atletismo, natação e andebol, principalmente).
Mesmo que a ventilação da possibilidade de extinção tenha como móbil latente o apelo aos associados e simpatizantes no sentido da pronta concertação para se debelar rapidamente os entraves actuais à governação sadia do clube, nunca tal eventualidade deveria sequer constar assumidamente num processo de intenção.
O Clube Académico de Futebol é mais do que um clube descartável devido à dívida de 242000 euros a um antigo jogador ou por alguns dirigentes considerarem que tem uma estrutura pesada, e da qual são parte integrante.
O Clube Académico de Futebol é há muitas décadas a referência máxima de afectos desportivos de uma cidade e de toda uma região e um factor crucial de auto-definição em termos de pertença clubística, ou seja, constitui-se como uma referência identitária indiscutível ao nível do desporto local que nenhum outro clube que agora porventura viesse a ser criado em sua substituição conseguiria alguma vez fazer esquecer, mesmo que esse clube surgisse sem passivo financeiro como o actual...
Tem um passado e um historial de feitos e atletas desportivos que engrandeceram a cidade e é também essa cidade que tem a obrigação de encontrar as soluções para inverter o panorama actual e não deixar cair levianamente um século de história da entidade que dá significado maior à prática desportiva em Viseu.

terça-feira, outubro 19, 2004

Os Diários de Che Guevara

Retrato fílmico da incursão de Ernesto Guevara e do seu amigo Alberto Granado pelos confins da América Latina, ao comandos de uma “Poderosa” Hudson 500, em 1952, é também o espelho que reflecte o germinar de uma consciência crítica em Ernesto perante a miséria humana e as flagrantes injustiças presenciadas durante a aventura, fossem elas a expulsão dos camponeses das terras de onde retiravam o seu sustento, a repressão exercida sobre os mineiros ou o apartheid imposto aos doentes leprosos.
Frequentemente envoltos em episódios bastante caricatos, os dois inseparáveis amigos vão descobrindo empiricamente ao longo viagem a realidade social, económica e política do seu continente, até então desconhecida da maioria das pessoas que partilhavam a sua (favorável) condição social.
Esta descoberta provoca em Ernesto uma nostalgia de um mundo que nunca conheceu, aferrando-lhe galhardamente até ao final da viagem um conjunto de ideais outrora adormecidos e que o irão impelir na tentativa de mudar o status quo, porque doravante também o seu Eu passaria a ser um outro Eu, aquele que o iria transformar em ícone e deixar para a posteridade.

sábado, outubro 16, 2004

Poesia Brasileira

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai pela frente do corpo.
A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda –
esses garotos ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas em rotundo meneio.
Anda por si na cadência mimosa, no milagre de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte por conta própria.
E ama.
Na cama agita-se.

Montanhas avolumam-se, descem.
Ondas batendo numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda.
Vai feliz na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda, rebunda.

Carlos Drummond de Andrade


quinta-feira, outubro 14, 2004

Bailado em Alvalade

Um dos problemas do futebol como espectáculo é a sua indeterminação. Neste aspecto é muito diferente de outros géneros artísticos. Antes de ver um filme ou uma peça de teatro podemos ler as críticas, inteirarmo-nos sobre o seu conteúdo e sobre a forma como este é apresentado. No futebol, como no cinema ou no teatro, conhecemos o elenco mas não podemos prever como será o espectáculo. Temos que ir esperando que algo de especial aconteça. Ontem houve bailado em Alvalade. O elenco português esteva bem montado. Não é difícil perceber quais as opções do encenador, são claras e fazem sentido. Mas depois tudo depende das circunstâncias e dos intérpretes de ambos os lados. Ontem a equipa de Portugal, recorrendo à gíria futebolística, “abriu o livro”, contra uma selecção russa bem acima da média. É certo que as bolas pareciam telecomandadas e que tanta exactidão é quase impensável. Não é menos verdade, porém, que a equipa foi muito para além dos golos marcados. O realizador da RTP foi feliz, no final do jogo, ao revelar os bailados executados pelos principais artistas – movimentos que podem, ou não, estar relacionados com os golos. Acima de todos Deco. É lindíssimo vê-lo jogar assim. O controlo que tem sobre o corpo, a sua noção de espaço, de passe, tornam-no quase perfeito. A seguir Ronaldo. O modo como avança para a defesa é sublime, como que dizendo ao adversário que nada pode fazer contra a sua arte. Deve meter muito medo defender alguém como Ronaldo. Tenho assistido a alguns jogos dos seus jogos no Manchester e é sempre assim. Os ingleses preferem falar de Rooney. Por último Carvalho: de uma elegância única, demonstrando toda a beleza inerente ao ofício de defender. Haverá poucos defesas no mundo como ele. Os actores principais foram bem coadjuvados pelos restantes intérpretes e é bom saber que há outras opções para os diferentes lugares. O mais importante deste jogo foi que, por breves momentos, as pessoas esqueceram-se que assistíamos a uma competição entre nações, deixando-se levar pelo espectáculo. No Café Estrela estavam cinco russos. Depois do intervalo aplaudiram de pé todos os golos portugueses. Para quem gosta de futebol era a única coisa a fazer. Ontem houve bailado em Alvalade.

Selecção

Como ontem à noite considerava o Gil, e com inteira razão, é inadmissível como é que a Selecção Nacional permitiu que a Rússia marcasse um golo!

terça-feira, outubro 12, 2004

Alberto João é um Milagre

Depois de ainda ontem ter comentado, no final da visualização do mais recente filme de Emir Kusturica, “A Vida é Um Milagre”, que a capacidade inventiva do realizador jugoslavo continua a dar cartas no seu cinema étnico, eis quando hoje de manhã me vejo confrontado com a óbvia necessidade de relativizar o talento criador do jugoslavo, ao deparar com as frases proferidas pelo líder do Governo Regional da Madeira a propósito da detenção do Presidente da CM de Ponta do Sol por alegada corrupção.
Num dos comício pré-eleitorais, insinuou Alberto João que o PCP «está infiltrado» na Polícia Judiciária da Madeira e teve influência para o desfecho agora obtido (nem se deve ter apercebido de que estava a fazer um grande elogio à competência e ao profissionalismo dos tais elementos policiais comunas infiltrados...).
Realmente, perante isto, Kusturica ao lado de AJJ é apenas um mero principiante na arte de fantasiar ficções surreais e delirantes. Tão fértil é a imaginação do líder madeirense que consegue até inverter as sequências reais com uma naturalidade estonteante. Só assim se consegue compreender como é que a mesma pessoa que envia uma missiva ao Ministro da Justiça, antes das detenções preventivas de quadros da Câmara Municipal da Ponta do Sol, a queixar-se da actuação da Inspecção da Polícia Judiciária (PJ), no período pré-eleitoral, nomeadamente a notificação de um destacado quadro da administração regional para depor, como arguido, num processo judicial em curso, consegue vir depois a terreiro apregoar que mesmo em época de eleições pediu à polícia que actuasse sem medo!
Definitivamente, está visto que AJJ não pede meças aos grandes mestres da sétima arte na elaboração de enredos criativos, plenos de farta imaginação e pródigos em humor.

sábado, outubro 09, 2004

O Tal Canal

Acerca das censuras que se exercem sobre a televisão, por parte dos detentores dos media:
"São factos tão grandes e grosseiros que a crítica mais elementar se apercebe, mas que escondem os mecanismos anónimos, invisíveis, por meio dos quais se exercem todas as censuras de todas as ordens que fazem da televisão um formidável instrumento de conservação da ordem simbólica."
Pierre Bourdieu, "Sobre a Televisão".

sexta-feira, outubro 08, 2004

Marcelo

O universo político tem uma autonomia própria que não permite análises simplistas. Longe de ser um mero reflexo de uma infra-estrutura material, o mundo político é ele próprio produtor do real. A questão “Marcelo” é uma machadada poderosa desferida neste governo. Figura mediática, quase com dois milhões de espectadores por domingo, Marcelo faz parte da nossa cultura popular e conseguiu, com distinção, ganhar o respeito de um imaginado português médio. O professor anda há muito cometido numa luta, disputada em jornadas semanais, contra o primeiro-ministro e os seus acólitos. A sua auto-exclusão dos noticiários da TVI, depois de ter sido amavelmente convidado a calar-se, foi o seu último ataque, o mais contundente. A sombra da censura não vai largar o governo. Foi bom, também, termos um exemplo visível do modo como os media vão funcionando e das suas relações com o mundo político. Mas a questão mais interessante é perceber se Marcelo tem lugar noutra televisão portuguesa. A SIC é propriedade do fundador do PSD. A RTP, já se sabe, é de quem está no poleiro. Nos media da PT, com o exemplo de jornalismo independente que se tornou o Diário de Notícias de Luís Delgado, o senhor, recorde-se, que está à frente da Lusa, também não deve caber. Onde colocamos Marcelo?
Apesar de as pessoas relativamente educadas já terem percebido o que significa este governo, resta ainda o perigo real do populismo, especialidade absoluta de Santana e Portas. E como é preciso levantar poeira para esconder a destruição sistemática de tudo o que é público neste país (isto é, de todos, mas que quase sempre é apropriado pelos senhores feudais que governam o rectângulo) preparem-se para o regresso das promessas aos velhinhos, das inaugurações em catadupa, da defesa da lavoura, e, quem sabe, do reaparecimento em força do discurso contra os emigrantes, empossados da responsabilidade do desemprego e dos baixos salários.

quarta-feira, outubro 06, 2004

Espectro

"O ex-presidente do PSD Marcelo Rebelo de Sousa anunciou hoje que vai deixar de fazer comentários na TVI, na sequência de uma reunião a pedido de Miguel Paes do Amaral, presidente da Media Capital."

Até apetece plagiar, com algumas novas nuances, um filósofo alemão:
"Um espectro ronda Portugal - o espectro do censura."

segunda-feira, outubro 04, 2004

Baldrick e a arqueologia do trabalho

Alguém se lembra de Baldrick? Baldrick era aquela figura pequena, normalmente suja e não muito inteligente, que acompanhava as aventuras de Black Adder, personagem televisiva imortalizada pelo conhecido cómico inglês Rowan Atkinson. Pois bem, Baldrick, ou melhor o actor Tony Robinson, está de volta, apresentando uma série de documentários sobre os piores trabalhos existentes na Inglaterra oitocentista da rainha Vitória. O título é algo guloso, mas a intenção comercial proporciona uma curiosa e interessante, se bem que ligeira, arqueologia do trabalho no período de intensificação da revolução industrial. Robinson viaja por diversos espaços laborais, demonstra como se edificaram as grandes obras, quem construía os túneis e as valas, por onde passaram os comboios, revela as condições nas fábricas, a exploração da mão-de-obra nos campos, os trabalhos forçados, o trabalho infantil. A presença nos ambientes de trabalho e a exemplificação de “como se fazia” possibilitam a compreensão da violência inerente a muitas ocupações (Violência que sobreviveu, em larga medida, à Inglaterra industrial vitoriana. As fotografias de Sebastião Salgado sobre o “trabalho” são um bom exemplo do tratamento do tema na actualidade). Os documentários apresentados por Robinson permitem, ainda, de uma forma geral, mergulhar na vida quotidiana dos grupos sociais mais baixos, traçando a sua genealogia. Este programa passa em horário nobre, ao Sábado, num dos principais canais ingleses. Diga-se que a televisão inglesa está muito longe de ser um exemplo de qualidade. No entanto, é considerável a atenção conferida ao documentário. A utilização de actores como Tony Robinson, ou como os ex-Monty Phyton Terry Jones e Michael Palin, na apresentação de documentários históricos ou de viagens, é uma forma encontrada de transmitir de forma simples e didáctica, não descurando a qualidade, conteúdos históricos e sociais. Um facilitismo, dirão alguns. Ao conseguir unir a distracção ao conhecimento estes documentários cumprem, porém, uma função importante que não belisca o seu valor. Isto faz-me lembrar quanto seria necessário encontrar em Portugal alternativas ao José Hermano Saraiva, que, pese embora a sua historiografia, povoada em demasia por reis, rainhas, príncipes e princesas, lá vai fazendo o seu trabalho de divulgação.

sábado, outubro 02, 2004

A Igreja do carmo

É a terceira igreja mais representativa da cidade de Viseu. Herdeira da tradição secular das igrejas aldeãs, também ela é branca, está orientada na direcção leste-oeste de forma a permitir aos fiéis ficarem voltados para o sol-nascente, e o seu acesso faz-se por intermédio de alguns degraus de pedra, os quais separam o templo do solo profano.
Se, como as igrejas dos camponeses, a Igreja do Carmo partilha com estas, pela sua imponência e grandiosidade, a função simbólica de domínio sobre o espaço envolvente, no entanto, actualmente distingue-se da simbologia tradicional das igrejas aldeãs por um infeliz e notório aspecto: o seu estado de conservação, ou melhor a absoluta ausência dele.
Sempre foi regra nas igrejas aldeãs que a sua conservação e reparação fossem um dever de todos os habitantes da aldeia. Para isso a norma era criarem-se comissões que arrecadavam de forma autorizada fundos monetários visando a manutenção da integridade das igrejas.
No caso específico da Igreja do Carmo, desconheço a quem compete zelar por esta obrigação, se à igreja católica, aos fiéis da freguesia, ou ambos.
O que salta à vista desde há bastante tempo é o ostracismo a que esta Igreja tem sido votada. Tinta a desprender-se em massa das paredes, deixando clareiras enorme de cimento e pedra à vista, vidros partidos, madeira carcomida, um sino completamente enferrujado, arcadas de pedra asfixiadas pelo negrume da poluição e inundadas de fungos, enfim, uma desgraça total!
Perante isto, a Igreja Católica não tem vergonha em deixar um tão nobre edifício naquele paupérrimo estado de conservação? E os fiéis da freguesia e da cidade não se inquietam pela desagregação evidente da sua Igreja e do seu património?
Eu, que não sou católico nem professo qualquer fé religiosa, dei-me conta por mais de uma vez nos últimos dias a cirandar perto do templo nos últimos para ver para crer como é possível deixar chegar aquele edifício a tão deplorável aspecto, tal o espanto...

sexta-feira, outubro 01, 2004

O Gado

A BBC tem um programa semanal em que um painel de convidados, das mais diversas especialidades mas com forte representação política, responde a perguntas de uma audiência seleccionada. As perguntas debruçam-se sobre temas da actualidade. Um dos assuntos tratados num dos últimos programas foi a emigração. O líder do partido conservador, Michael Howard, propôs um regime restrito de quotas para estancar o número de emigrantes que entra todos os anos no país. O partido conservador, que perdeu o centro político para os trabalhistas e se vê ameaçado pelo liberais democratas, guindou a sua política para a direita tentando pescar votos a partidos extremistas e xenófobos, renovados pela onda anti-europeísta. As opiniões dos convidados perante o problema foram quase consensuais. Os representantes conservador, trabalhista e liberal democrata concordaram, com diferentes graus de rigor e linguajar, com as quotas. Entre os convidados encontrava-se uma jornalista do Daily Mail, tablóide conhecido pela sua política editorial anti-emigrante. Começando por afirmar que não era racista, porque tinha sido bem educada, a senhora defendeu as quotas afirmando, no entanto, que a Inglaterra precisava de emigrantes. E que tipo de emigrantes? Emigrantes seleccionados por uma espécie de renovação da prática da eugenia, isto é, tem que ser jovens, sãos e fortes, qualificados, obedientes, que não ponham em causa as instituições, que conheçam e se adaptem obrigatoriamente à cultural britânica, que sejam trabalhadores obedientes. Perante a afirmação, não contrariada pelos outros convidados, um jovem da plateia, filho de emigrantes, acusou a jornalista de tratar as pessoas como gado. Podia ter-lhe chamado nazi. Adiantou ainda que, como ela bem sabia, a Inglaterra precisa da mão-de-obra emigrante e se existem clandestinos é porque há interesses económicos que beneficiam com a sua entrada, especialmente porque não lhes oferecem direitos sociais, lhes pagam salários baixos e não cumprem as leis laborais. A resposta foi a habitual: mas acha que o país pode abrir as portas a toda a gente?
Claro que os países não podem abrir as portas a toda a gente. Mas o debate tem que se descentrado da política interna dos países que acolhem emigrantes para ser focado na sua política externa. É precisamente pelo facto de os países desenvolvidos estrangularem as economias do terceiro mundo, exploradas primeiro pelo colonialismo e agora pelo neo-colonialismo económico, que os seus habitantes são obrigados a moverem-se. E vão, naturalmente, continuar a fazê-lo. O modo como os ingleses colocam publicamente a questão da emigração, mesmo os representantes do partido trabalhista, vai muito para além do que ouvimos à direita portuguesa. Não digo que os métodos não sejam os mesmos, mas o despudor das afirmações públicas, de políticos e de jornalistas, são preocupantes, porque tornam o racismo – sem lhe chamar racismo claro -, na coisa mais banal do mundo. Pelo rectângulo, apesar de tudo, ainda há alguma vergonha. Até quando?