sexta-feira, abril 29, 2005

A terra das oportunidades

O velho Edward Shills lá dizia que as sociedades mais justas não eram aquelas efectivamente mais justas mas as que conseguiam passar com maior eficácia a ideia de que o eram. Neste sentido, segundo ele, os Estados Unidos era a sociedade menos desigual porque conseguiu criar a crença generalizada de que era possível vencer. Esta crença é conhecida pelo sonho americano e faz parte de qualquer agenda ideológica liberal e neo-liberal. Um estudo sobre mobilidade social em países ocidentais publicado pela London School of Economics indica que os Estados Unidos, seguido pela Inglaterra, é o país ocidental em que a mobilidade social é mais baixa. Os investigadores dizem mesmo que nos Estados Unidos a mobilidade é quase estática. Sugerem ainda que o sistema de educação é o grande instrumento de manutenção das desigualdades, já que, como canal fundamental de mobilidade, pune aqueles económica e culturalmente mais fracos, protegendo os mais fortes. Isto é, citando um clássico da sociologia, o sistema de ensino actua como um instrumento de reprodução da estrutura social. Não surpreendentemente são os países que ainda mantêm serviços públicos relativamente fortes que apresentam taxas de mobilidade mais altas: Noruega, Suécia, Dinamarca e Canadá.

terça-feira, abril 26, 2005

Fórmula 1

Porventura devido ao entusiasmo criado pela adesão recente às corridas de Karts, consegui visionar este fim de semana, mais de 10 anos depois, uma corrida de Fórmula 1, do princípio ao fim.
Desde os tempos em que Senna e Prost finalizaram os confrontos nos circuitos, que os grandes prémios foram perdendo para mim boa parte do encanto a que até então tinham estado associados.
Com a memória pessoal esticando-se ao início da década de oitenta, quando pontificavam o louco finlandês, Keke Rosberg, o falecido Gilles Villeneuve, Patrick Tambay, Nelson Piquet, Andrea de Cesaris, Michele Alboreto, Nigel Mansel, Thierry Boutsen, além dos citados Senna e Prost, ao volante de Ferraris, Mc Larens e do meu carro preferido, o Lotus, patrocinado pela John Players Special, em todas as quinzenas aquelas duas horas de Grande Prémio em frente do televisor eram praticamente sagradas.
Eram tempos em que as garantias de segurança que os carros ofereciam primavam por uma certa precaridade, fazendo os pilotos do risco e da audácia constantes consortes traiçoeiros da integridade física.
Mudaram os tempos, apareceram novos pilotos, novos circuitos, novas regras de segurança, e o entusiasmo refreou-se. Os laços afectivos com os ídolos de sempre extinguiram-se com o seu desaparecimento, os palcos de aceleração situavam-se nos mais insuspeitos e indiferentes locais (Malásia, Bahrein, Turquia), enquanto que outros eram apagados do mapa (Estoril), novas regras de segurança diluíram a margem de erro dos pilotos, e, sobretudo, surgiu Schumacher.
Tornado por mérito próprio a maior figura da disciplina automobilística, cerceou toda a concorrência durante anos a fio e provocou com a sua indesmentível superioridade o bocejo permanente sobre a incerteza quanto ao vencedor.
Até que este ano, ao que parece, a F1 volta novamente às grandes emoções, graças a um piloto espanhol, Alonso, que neste G.P de San Marino susteve o primeiro lugar acossado ininterruptamente pela maior lenda vida da F1, Schumacher, durante as últimas 15 voltas. Sem vacilar, sem se desconcentrar um centésimo, ganhou a corrida e fez com que os comentadores televisivos dissessem que há muito que não se via uma corrida assim.
Depois de tantos anos de afastamento, acho que escolhi o dia certo para ver novamente um Grande Prémio.

domingo, abril 24, 2005

Do livro e da venda

Ando a perguntar-me por que raio as pessoas se desfazem de livros. Por necessidade primária, claro. É preciso dinheiro, e toca a vender os pertences. E como as casas portuguesas estão cheias de livros e por aí que se começa. É no que dá a abundância. Mas há quem os ache um estorvo, como os jornais, desarrumam a casa, uma chatice. É no entanto evidente que uma casa fica bem desarrumada com livros e outras papeladas. É lindíssimo, a livralhada junta a combater as perseverantes mentalidades domésticas. As casas são pequenas, dirão alguns com razão. É certo, mas enquanto houver espaço para o serviço de casamento deixado pela bisavó, os inenarráveis bibelots da tia, a colecção de revistas Motor do pai, o enxoval da madrinha, os bares ao canto da sala, o cão de loiça e o urso de peluche do Benfica, haverá também lugar para os livros. E se quiserem comerciar, já que o país está carente de empreendedores, deixem os livros para penúltimo lugar, antes, naturalmente, de se livrarem do urso do Benfica - que aliás só deve ser alienado em caso de catástrofe nuclear, e mesmo assim só depois de vendermos a avó em leasing para a apanha do tomate na Estremadura espanhola. Já agora, em vez de venderem livros, podiam oferecê-los, ou deixá-los num café ou num banco de jardim, era mais fofo.

sexta-feira, abril 22, 2005

Prémio Carreira

Não sabia que também havia disto no Vaticano!

Bento 16 e o Patriarcalismo

Na matéria que se reporta à eleição do novo Papa, e independentemente da mais ou menos vetusta ambição do Papa Bento 16, este é reconhecido como tendo sido mais o mais influente mentor da doutrina perfilhada pelo papado anterior, aquele que morigerava as posições morais da Igreja Católica a respeito de diversos temas “fracturantes” das sociedades contemporâneas.
Não sendo portanto surpreendente a sua nomeação, considero que é mais honesto que a figura ideológica dominante do Vaticano há longos anos, saia finalmente dos bastidores e dê a cara no papel de principal actor do Vaticano.
Dos diversos temas controversos sobre os quais tomou conhecidas posições no passado , gostaria de opinar sobre uma questão que penso ser particularmente sintomática de um desfasamento obstinado da realidade social, adoptado pelas elites católicas dominantes, incluindo Ratzinger, ou seja, o patriarcalismo, enquanto sistema caracterizado pela autoridade, imposta institucionalmente, do homem sobre mulher e filhos no âmbito familiar, e que se enraiza na estrutura familiar e na reprodução socio-biológica da espécie.
A frontal e veemente oposição à ordenação das mulheres para as funções sacerdotais, que tem sido transmitida nas prédicas de Ratzinger, denota uma clara resistência às reivindicações para a concessão de um estatuto de igualdade às mulheres no seio da Igreja Católica.
Estas reivindicações cobrem-se de antanho mas acentuaram-se nas últimas décadas em paridade com um conjunto simultâneo de transformações sociais, tecnológicas e culturais que vão desde;
- o aumento da autonomia reprodutiva feminina através dos avanços tecnológicos na medicina reprodutiva e na farmacologia;
- o surgimento de uma grande variedade de estruturas domésticas, visíveis através da proliferação de lares de solteiros e habitados por apenas um dos pais;
- a crescente taxa de divórcios, que por sua vez se associa a outras tendências importantes: o adiamento da formação de casais e a formação de relacionamentos sem casamento.
- a incorporação massiva das mulheres no mercado de trabalho remunerado, traduzida quase sempre numa contribuição financeira decisiva para o orçamento doméstico;
- por fim, relacionado com os factores acima invocados, o aumento da influência social, política e cultural dos diversos movimentos feministas numa economia informacional global. Tais movimentos, não obstante a diversidade de objectivos e adversários, perfilam uma ideia comum: a abolição do patriarcalismo.
Negar estas evidências, enterrando a cabeça na areia, ou fazer de conta de que elas ocorrem numa qualquer superestrutura metafísica erigida por indívíduos que se inserem uma faixa populacional numericamente muito restrita, e portanto irrelevante, é um sintoma de intenso atavismo de que a Igreja Católica se faz valer publicamente e que prenuncia mais um afastamento incompreensível a medio prazo da comunidade de crentes.

quinta-feira, abril 21, 2005

Ecos de Weimar

A emigração tornou-se, por iniciativa do partido conservador, o grande tema das próximas eleições inglesas do dia 5 de Maio. A táctica é a do medo e da ignorância e o resultado é o incremento do racismo. Os conservadores, que utilizam a emigração porque perderam o centro político para Blair, subiram nas sondagens e estão perto dos trabalhistas. A utilização do fantasma da emigração é uma estratégia sem qualquer suporte factual, já que todos os números provam que o número de emigrantes a entrar em Inglaterra nos últimos anos tem vindo a decrescer. O país goza de uma considerável saúde financeira e o desemprego, apesar de recentes casos com o da Rover, mantém-se baixo e estável. É precisamente devido a este cenário que a eficácia da táctica do medo se torna mais impressionante. Imaginemos então uma situação de crise do sistema capitalista semelhante à que ocorreu em 1929, falências, inflação, aumento do desemprego. Em que é que se transformará esta retórica primária?

sexta-feira, abril 15, 2005

Aeroporto II

Chegada a Londres e uns senhores fardados revistavam malas no aeroporto, seleccionando as pessoas através de um mais que evidente critério étnico. O meu castanho semi-escuro devia estar na fronteira do suspeito e não me safei. A revista foi acompanhada com um inquérito mal disposto que se foi suavizando depois do senhor perceber que eu era estudante. Ainda pensei adoptar uma postura à Mourinho, mas fui interrompido pela curiosidade do caucasiano nos dois pães alentejanos que transportei para a ilha. Olhou, rodou-os e passou-os por aquela máquina que tira radiografias a malas e outras bagagens. Nenhuma arma de destruição maciça. De certa forma achei aquilo um elogio ao Alentejo e ao padeiro que os confeccionou, que o zeloso guarda inglês quis promover a membro da célula da Al-Qaeda na Amareleja. Mas há que ser compreensivo, o pobre homem come pão-de-forma desde que nasceu e isso não é saudável.

Aeroporto I

Os aeroportos estão em rápido processo de democratização. Claro que nem todos os portugueses viajam por avião, mas é evidente que muitos que não o faziam, fazem-no agora, tornando mais interclassista o espaço do aeroporto. Para isto terão contribuído decisivamente as viagens para a América do Sul e Caraíbas. Brasileiros e Caribenhos recebem os portugueses como nós recebemos no Algarve grupos de classes baixas e médias baixas provenientes da Inglaterra e da Alemanha. Para estes novos turistas portugueses, o Brasil dos resorts onde pululam palmeiras e lagostas são uma espécie de sonho de vida em saldo. Nestes espaços fabricados para turistas, protegidos do mundo perigoso dos “indígenas” e das suas vidas reais, ensaia-se uma vida de luxo que nunca se teve, gerida cuidadosamente pelas agências de viagem e pelos fabricantes do “very typical”. O bronze é capitalizado depois no regresso à pátria, durante o abusivo horário de trabalho e nas filas de trânsito.

terça-feira, abril 12, 2005

Jardim de Infância de Moselos

O Jardim de Infância de Moselos, uma aldeia do concelho de Viseu, deu ontem início a uma feira onde estão à venda artigos feitos pelas crianças daquele estabelecimento e recolhidos junto dos encarregados de educação.
O objectivo da feira consiste em angariar fundos para a aquisição de material didáctico, como jogos e livros e, eventualmente, um computador para o estabelecimento, já que, segundo a organizadora da iniciativa, “os apoios que vêem do Ministério da Educação não dão para quase nada”.
O Ministério da Educação, a quem compete a tutela pedagógica da instituição, devia, certamente, conhecer o perfil social da maioria das crianças que frequentam aquele estabelecimento de educação e as carências por que passam grande parte das famílias daquelas 49 crianças em termos de bens culturais que possam colocar ao dispor das aprendizagens e do desenvolvimento daquelas crianças desde tenra idade, à semelhança do que acontece com aquelas que nascem em lares economicamente mais bafejados.
Seria de elementar justiça num Estado que se quer redistribuidor de riquezas e oportunidades, que crianças tão novas não tivessem que estar envolvidas tão precocemente em estratégias mercantilistas para a dotação material do estabelecimento pré-escolar que frequentam e assim poderem usufruir de actividades educativas na justa medida de igualdade com as demais.
Se o grau de desenvolvimento civilizacional de um país se deve também medir pela existência de um rede tendencialmente gratuita de estabelecimentos de educação pré-escolar, territorialmente abrangente e financeiramente bem dotada, o exemplo que o jardim de infância de Moselos corporiza por estes dias não será propriamente o melhor indicador a este respeito.

terça-feira, abril 05, 2005

Shares

Para azar dos azares o Papa João Paulo II morreu à hora do Boavista-Sporting que iria ser transmitido em directo na TVI. A antiga televisão da igreja enfrentou o dilema e decidiu-se pelo futebol. No intervalo do jogo, quem esperasse alguma notícia sobre o Papa, para além dos infindáveis rodapés, ficou desapontado, já que tivemos 15 minutinhos de anúncios. Pois é. O share da TVI foi de 42,5%. Nada mau, para um país católico. Já ontem, a RTP, adiou um grande programa de informação sobre segunrança já que a Fátima Campos Ferreira estava no Vaticano a fazer reportagem. As reportagens que têm sido feitas do Vaticano, especialmente as que implicam entrevistas de rua, estão bastante próximas do ridículo absoluto. Toda a gente gostava do Papa, mas ninguém consegue explicar porquê, além claro, de referirem que o Papa era um homem muito bom e defendia os pobres. Claro que ninguém pergunta como é que o senhor defendia os pobres. A fé é uma crença, e se os católicos gostam de criar deuses na terra estão no seu direito. Parece claro, porém, que deviam estudar um pouco a história da Igreja e o modo como, em grande parte, a mensagem e a acção cristãs têm sido subvertidas. João Paulo II, instrumento do cardeal Ratzinger, o homem que controla realmente na Igreja, foi o Papa da contra-reforma, que pôs em causa os avanços conseguidos pelo Concílio Vaticano Segundo, que perseguiu católicos como os seguidores da Teologia da Libertação, que, em termos sociais, pugnou por um conservadorismo reaccionário, que condenava o capitalismo mas ao mesmo tempo favorecia a Opus Dei, braço económico da Igreja. Que o próximo Papa seja melhor do que o último.

segunda-feira, abril 04, 2005

Público on-line pago

Na senda do que alguns media escritos já tinham também feito o site do jornal Público passou a disponibilizar, a partir de hoje, os conteúdos da Edição Impressa on-line somente aos seus assinantes.
Continuo a achar muito discutível que as publicações que optam pelo condicionamento monetário da informação on-line retirem daí proveitos, actuais e futuros, significativos.
Desde logo, porque a lógica de fechar a sete chaves a informação vai completamente ao arrepio da cultura primordial da tecnologia de informação que é a Internet, ou seja, a cultura da livre distribuição e partilha da informação, como forma de democratizar o seu acesso. E porque essa continua ser a cultura dominante, a batalha pela elitização dos acessos não será facilmente vencida, principalmente quando à excepção dos artigos de opinião, todos os outros temas dos jornais são alvo de tratamento noticioso por parte de uma miríade de media e publicações on-line, nacionais e internacionais, isentos de assinaturas.
Depois, porque concentrando-se os adoptantes principais da prática da Internet nas faixas mais jovens, restringir o acesso aos conteúdos virtuais do jornal não será concerteza a melhor forma de atrair e cativar futuros leitores para o jornal.
Por outro lado, para quem não aderir à assinatura, será expectável um menor tempo de permanência no site, logo também um menor tempo de exposição a mensagens publicitárias, sendo portanto provável que ocorra um abaixamento do preço que as marcas pagam pela publicidade, dando azo ao famoso mecanismo de auto-regulação de mercado, tão prezado pelo Director do Público.
Ainda neste capítulo, os efeitos da diminuição de acessos e do menor tempo de permanência on-line não se farão sentir simplesmente na publicidade externa. Também o impacto da publicidade interna acerca da imensa panóplia de publicações apêndice que os próprios jornais de há algum tempo a esta parte tem vindo a aderir, e que segundo consta, são responsáveis por uma fatia considerável das receitas dos mesmos, será reduzido.
É por isso que para o apuramento final do saldo desta opção não bastará somar os créditos das assinaturas conseguidas. Terá que haver uma contabilidade bem mais abrangente.

sexta-feira, abril 01, 2005

Afinal temos um bom ministro

Alguns tiques de certas cliques portuguesas cintilam na crónica que Prado Coelho assina hoje no Público. Homem de cultura, Prado Coelho avalia o mundo e os indivíduos pela posse de competências culturais, situadas, está bem de ver, no mundo da arte dominante. Assim, Manuel Pinho, Ministro da Economia, porque é coleccionador de arte, alcançou o zénite da escala prado-coelhana. Cavaco, por seu turno, trocando Thomas Mann por Tomas Morus, e não sabendo quantos cantos tinham os Lusíadas - escândalo nacional - já não servia, por esses factos, para primeiro-ministro. Se são bons ou maus economistas, se partilham modelos de intervenção ou têm pensamentos diferentes, não interessa. A casaca cultural é que avalia os seus méritos. Talvez não fosse mau que estas metralhadoras de referências artísticas, para equilibrar, demonstrassem conhecimento noutras áreas socialmente menos charmosas: um pouco de física, umas noções de química, concepções básicas de engenharia, matemática, e talvez mesmo algum saber prático, em marcenaria, agronomia e metalúrgica. Mas não, continuamos a fazer loas à aparente excelência do nosso provincianismo.