O director do jornal Público escreveu hoje, a propósito dos acontecimentos em França, um editorial intitulado, Não é o social, estúpido: é a cultura. Enfiei o barrete. Sou precisamente desses estúpidos que, considerando a importância de algumas variáveis culturais, atribuo ao que Fernandes chama de "social" a origem do sucedido. Gostava de argumentar que o estúpido é ele. Confesso, porém, que não o acho estúpido, mas simplesmente perigoso. Atribuir a manifestações violentas uma origem cultural é absurdo. Claro que Fernandes, como outros, não diz isto directamente, eufemiza a questão, fala das dificuldades de integração, mascara um discurso que, sem máscara, quer fazer regressar a ideia de combate civilizacional. Eles são muçulmanos, emigrantes de segunda geração, mas nunca "franceses" socializados na sociedade francesa. O seu problema é que não se conseguem adaptar à "nossa cultura". As culturas tornam-se assim dois blocos unificados, sem fracturas, apenas intermutáveis quando eles, os outros, abdicam do que é seu e se integram. A coisa lembra um pouco as políticas coloniais de assimilação. Esta abdicação implica, se não formos hipócritas como Fernandes, aceitar a vida sem futuro das classes baixas ocidentais, acrescentando-se a isso o estigma proveniente da discriminação de origem cultural. Mas a questão da cultura não resiste a análise mais atenta. Desde logo, pelas informações mais cuidadas, se percebe que não se tratam em grande parte de jovens muçulmanos, que nem todos são de origem emigrante e que o que realmente partilham é o subúrbio francês, esse espaço de desemprego, esse espaço que o Estado abandonou aos poucos. O discurso da "cultura" mascara o discurso da "classe". Não que a classe resolva tudo. Há variáveis culturais e mesmo geracionais que interessa observar, mas a origem de classe é factor determinante. O que sucede, tal como acontece nos Estados Unidos, é que em certas áreas urbanas a classe etnicizou-se.
O discurso de Fernandes é perigoso socialmente porque a "cultura" não é mais do que uma forma sofisticada de regressarmos ao racismo mais primário e à ideia de que os Homens não depende das condições em que são criados mas de uma qualquer essência cultural que, note-se, nunca é explicada senão através de um conjunto de estereótipos ignorantes sobre o "outro".
Mas a grande discussão por detrás da "cultura" é claramente económica. Atribuindo à cultura a responsabilidade de muitos problemas quotidianos, anula-se qualquer ideia de repensar os serviços sociais do Estado. Ao Estado, deste modo, cabe defender a "boa cultura", o que implica quase sempre a lei e a ordem. Não tendo os problemas uma origem social não há razão para parar a progressiva erosão da participação do Estado social na vida dos cidadãos.