A recente criação de um novo clube por parte de um grupo de adeptos dissidentes do Manchester United, em sinal de desagrado provocado pela compra da maioria do capital do famoso clube das Midlands pelo magnata norte-americano Malcolm Glazer, surge, indiscutivelmente, como um grito de alerta e revolta para o perigo de desvirtuação da identidade clubística e de valores do jogo que ameaça corroer algumas agremiações futebolísticas espalhadas por essa Europa fora.
Tornado o clube mais rico do planeta na década de 90, e historicamente expoente máximo da globalização da indústria futebolística, o United tornou-se recentemente alvo de atracção por parte daquele multimilionário norte-americano, o que não sendo uma novidade nos dias de hoje, distancia-se ainda assim de casos semelhantes, como o Chelsea, por ter sido accionado por parte de um indivíduo garantidamente sem qualquer vínculo emocional ao jogo ou ao clube. Creio ter sido a partir daqui que boa parte da revolta se instalou entre os adeptos dissidentes.
Ao invés do que sucedeu com o Chelsea de Abrahamovic, por exemplo, um clube de bairro, habitualmente arredado de feitos de relevo alcançados nos relvados, que não desperta grande fervor na velha Albion, o United é um clube com expressão por toda a ilha, recheado de proezas futebolísticas ao longo do seu tempo de vida e detentor de um rico historial de atletas célebres, alguns deles a quem a vida foi tragicamente ceifada nos céus de Munique.
A sua eclosão primordial deve-se à vontade de um grupo de trabalhadores dos caminhos de ferro, operários ferroviários, que no século 19 viam no jogo uma forma não violenta de enfrentar de igual para igual a agremiação das elites locais, o City. A marca genética do clube em termos do perfil social dos seus adeptos de base manteve-se com o correr dos anos, não obstante as necessárias nuances introduzidas pela crescente popularidade nacional e internacional do mesmo.
Sabiam os adeptos que o clube era comandado por dirigentes que, apesar da pretensão de progressiva mercantilização da marca e obtenção de lucros, o United continuava a ter à sua frente indivíduos, se não todos, pelo menos alguns, que além de deterem uma visão estratégica do clube como instrumento de receitas globais, possuíam simultaneamente uma adesão emocional incondicional ao clube.
A circunstância de Glazer ser originário de um país que não possui uma tradição histórica no jogo, de nunca ter partilhado a memória colectiva de vitórias, derrotas e tragédias que formatou muitos dos fãs do United, e de provavelmente subestimar esse passado em prol exclusivamente da rentabilidade financeira do seu investimento, terá sido uma gota de água muito grande para a imagem dos ideais de agremiação clubística que seriam intocáveis aos 2600 antigos adeptos do United.
A ver vamos se em breve serão seguidos por outros adeptos, numa tentativa de recuperação da pureza perdida do jogo.