segunda-feira, março 14, 2005
À esquerda
Tudo leva a querer que, apesar de tal actividade não constar dos seus programas eleitorais, os dois partidos à esquerda do PS vão gastar parte das suas energias a confrontar-se. Os militantes devia queixar-se mas não o vão fazer. E porquê? Porque dizer mal do concorrente próximo é muito mais divertido do que chatear os que estão mais longe. O mercado ideológico de esquerda não é assim tão grande e todos querem ser os seus legítimos representantes. Representar a esquerda, neste caso, implica três exercícios, afirmação de uma identidade, a categorização do outro e a sua subsequente exclusão. Um partido defenderá, contra os que invadiram o seu espaço eleitoral, o seu vasto currículo de lutas. Dirá que o outro é uma manta de retalhos sem unidade ideológica e intervenção prática, que os seus eleitores ou são pequeno burgueses urbanos, intelectuais sem rumo, ou tontos alienados que nas próximas eleições podem votar no PP. Os mais refinados dirão que o outro partido é uma invenção do grande capital ou mesmo da CIA. Do outro lado, afirmar-se-á a novidade. Tentará mostrar-se um currículo limpo de relações históricas muito duvidosas, de símbolos usados e gastos e apelar-se-á a uma pluralização das causas. De seguida classificar-se-ão os eleitores do outro partido como seres sem individualidade, que vêem o mundo por aquilo que o partido decide que o mundo é: a velha teoria da cassete. Os estereótipos, tal como se ouve amiúdes vezes em relação às sondagens, valem o que valem. O problema é que a razão dos partidos acaba para passar para as atitudes dos seus simpatizantes. Da mesma forma que em relação às pessoas que votam à direita se aplicam indiscriminadamente categorias genéricas que correspondem sobretudo a um ideal político e não a uma existência social concreta: fascista, burguês, conservador, etc, (o que não significa, claro, que os fascistas, os burgueses e os conservadores não existam e que seu número não seja relevante), também as categorizações dentro da esquerda acabam por exercer uma violência sobre as pessoas que as sofrem. Não há melhor forma de criar um fascista do que chamá-lo de fascista. Aplicar uma grelha estritamente política ao mundo é abdicar de perceber a razão pela qual as pessoas fazem as escolhas que fazem. Em suma, é abdicar de tentar perceber as pessoas. Isso tem custado e vai continuar a custar muitos votos a uma esquerda que, em parte, deixou de perceber as pessoas. À esquerda do PS os próximos anos vão ser assim, a repetição até à náusea de jargões políticos, a busca da pureza ideológica, da verdade da casta, a privatização do protesto e do direito a reivindicar. Não é muito interessante, mas é o que se pode arranjar. É, apesar de tudo, a esquerda com que contamos.