Ao anunciar solicitamente o apoio do Governo Português para a nomeação de Guterres para o cargo de alto comissário da ONU para os refugiados, Sócrates conjuga duas intenções de natureza distinta: uma dum plano mais idealista (o apoio e a solidariedade ao ex-líder), outra dum plano pragmático (a machadada final ao anteriormente dado como adquirido pelo partido).
Essas duas intenções ambivalentes resultam do imbróglio que a maioria dos dirigentes do PS, incluindo o próprio Sócrates, criou com a vetusta litania de que Guterres seria o candidato natural e mais adequado à Presidência da República por parte do PS.
Alertado para as dificuldades praticamente insolúveis da imposição popular da candidatura de Guterres, não tanto na área de influência política do PS, mas no espectro partidário mais vasto de esquerda, das quais o próprio Guterres também tem noção, ao adiar quase ad eternum uma pronúncia pessoal a confirmar ou refutar a candidatura, e consciente de que para enfrentar Cavaco o partido terá que apresentar um candidato que acolha opiniões mais favoráveis do eleitores do PCP e do Bloco, pois que estes poderão ser decisivos na refrega presidencial, Sócrates, com a publicitação deste apoio, subtilmente manifestou já a sua pretensão de revogar a preferência inicial.
Com Guterres atirado para fora de jogo ainda no período de aquecimento por falta de atributos eleitorais, quem avançar pelo PS, para além dos votos dos eleitores do PS, terá de ser um candidato que congregue uma forte adesão de todo o espectro partidário de esquerda e que não provoque uma fragmentação excessiva do voto dos eleitores que com a mesma se identificam.
Nesta altura, a única personalidade que pode aspirar a tal chama-se Ferro Rodrigues.