segunda-feira, novembro 24, 2003

A festa da Taça

Eram memórias que datavam de tempos que me parecem hoje bastante remotos, quando o clube da terra disputava, alternadamente, a 3ª divisão e o Distrital da Associação de Futebol de Viseu.
Nesses anos, a vivência do jogo fazia-se também ali, junto às linhas de campo marcadas com cal, junto dos bandeirinhas e dos bancos de suplentes das equipas, e sempre acompanhada com os comentários dos adeptos às incidências do jogo e aos intervenientes.
No entanto, com a passagem dos anos esses memórias foram-se gastando, desvanecendo aos poucos e poucos até que ontem puderam ser novamente vividas junto à linha lateral do campo de jogos do 1º de Dezembro.
Desta vez não era o Lusitano de Vildemoinhos que jogava com o Mangualde, o Lamego, o Viseu e Benfica ou o Tondela. Era sim o Sporting contra o 1º de Dezembro.
O campo de jogos do 1º de Dezembro ainda é mais pequeno do que aquele onde passei muitas tardes na infância. Lá os lugares não são marcados, nem sequer existem cadeiras na bancada. O pessoal ou fica de pé no peão ou então senta-se no cimento da bancada. Houve ainda quem tivesse ficado nas árvores ou nos postes de iluminação ...
Optando nós por ficarmos de pé, junto do banco de suplentes que viria a ser ocupado pela equipa do Sporting, estávamos a dois metros da linha lateral do sintético. Tivemos que ir cedo para arranjarmos um lugar de onde fosse possível ver (quase) todas as incidências do jogo. Alguns que chegaram mais tarde não puderam ficar tão "confortavelmente" instalados e logo começaram a vociferar contra as condições que o campo oferece. Ripostou em alto e bom som um adepto com um cachecol do SCP: "O que é que querem? Cadeiras aquecidas? Isto é Taça!" Tinha razão, a Taça é mesmo assim.
Outro pormenor onde se viu claramente que era Taça. A equipa do SCP entrou em campo para os exercícios de aquecimento e os adeptos da equipa da casa imediatamente aplaudiram em uníssono os adversários.
Dado o pontapé de saída, à medida que um claro equilíbrio entre as duas equipas pautava o jogo, a insatisfação crescia nos adeptos do SCP.
Graças à "especificidade" do campo, essa insatisfação era directamente dirigida aos ouvidos do treinador e dos jogadores do SCP :
"Ó Fernando Santos, vê lá se fazes por merecer o ordenado que nós te pagamos!"; "Clayton, pressiona o guarda-redes, pá! Aposto que se ele tivesse lá o cheque do teu ordenado ias logo atrás dele a correr!"; "Ó Mister, já vi jogos de casados e solteiros melhores do que este!"
Com o intervalo veio mais uma substituição no Sporting. Pouco agradados com a permanência em campo de Clayton (eu próprio discordava da sua continuação), um adepto prontamente transmitiu a discordância aos ouvidos do treinador: "Ó mister, devia era ter tirado o Clayton. O rapaz (Paulo Sérgio) até estava a jogar bem!". Ao que o treinador respondia com indicações para dentro do campo: "Joguem a bola pelo chão, pá. Não vêem que salta muito?!", ou "Ó Tonito, passa a bola pra frente. Não quero passes para trás, fod.."
Com os golos e a definição do vencedor, ainda assim os adeptos do SCP não se eximiram de fazer chegar aos ouvidos dos jogadores a sua opinião: "Ó Luís Filipe, vê lá se corres, pá! Pareces uma andorinha!" "Estão satisfeitos com o 1-0? Isso, defendam porque é um óptimo resultado contra uma equipa da 3ª divisão, car...".
Mas como nem tudo eram críticas, quando a bola se aproximava da linha lateral o público por vezes saudava alguns jogadores: "Ó Chaves, tá tudo bem?", ao que o Chaves respondeu levantando o polegar para cima, ainda quando um dos suplentes da equipa da casa se levantou para fazer aquecimento, indo ter com uns amigos à linha, dizendo-lhes ao mesmo tempo que se ria: "Isto tá complicado para eles, hein!", ou quando um adepto dirigiu o seu pedido: "Ó Liedson, vais-me dar a tua camisola no fim do jogo, não vais ?", ao que Liedson respondeu, acenando negativamente com a cabeça.
Já perto do final, o jogador Tonito numa disputa com um adversário sofreu um corte na cabeça que o deixou a sangrar. Estava dado o mote, criado um modelo para um adepto, pelo menos avaliar pelo seu incentivo: "É assim mesmo, Tonito!" Há que sangrar a camisola!"

Por fim, com o apito final, e sob os aplausos dos adeptos caseiros e forasteiros, o treinador do SCP levantou-se, olhou para um dos postes de iluminação onde estava um adepto do SCP, sorriu e seguiu em direcção aos balneários.
O que é que querem? Isto é Taça!