Várias televisões do mundo transmitiram há poucos dias imagens dos protestos dos caçadores ingleses em frente ao Parlamento britânico. O órgão legislativo deliberou proibir a caça à raposa, tradição centenária por terras de sua majestade. Milhares de indivíduos rumaram a Londres demonstrando a sua ira em relação à decisão governamental. Alguns dos argumentos adiantados para justificar o protesto sugeriam que se tratava de mais uma luta entre o campo e a cidade. As classes médias urbanas e os seus representantes políticos não percebem os modos de vida do campo obrigando todo o país a sujeitar-se à sua sensibilidade particular. Para quem não esteja por dentro do contexto da caça em Inglaterra o argumento poderia fazer algum sentido.
A caça foi desde sempre uma forma de sobrevivência. Num contexto de necessidade, falar em direitos dos animais é absurdo. Sabemos, infelizmente, que os defensores dos direitos dos animais tendem muitas vezes a esquecer os direitos das pessoas. Uma inversão lamentável. O que se passa em Inglaterra, porém, nada tem a ver com um contexto de necessidade. A caça à raposa é um dos mais evidentes resquícios de uma mentalidade aristocrata de uma Inglaterra serôdia. O ritual que acompanha a caça à raposa é, sem dúvida, uma demonstração de posição de classe. Homens montados a rigor e dezenas de cães a bater o terreno e a perseguir implacavelmente as raposas. A figura literária do Robin dos Bosques representa, em certa medida, a luta pela democratização da caça num contexto em que os senhores feudais monopolizavam as terras. Os descendentes desses mesmos senhores pretendem, sob a capa da tradição e da cultura, preservar os seus rituais distintivos. O parlamento inglês decidiu acabar com isto.
É simplista, no entanto, afirmar que a questão da caça à raposa é um reflexo da oposição entre o campo e a cidade. Talvez seja mais adequado considerá-la como mais uma etapa da luta da burguesia contra a aristocracia. A sensibilidade das classes médias urbanas, o grande estrato de uma concepção alargada de burguesia, tende a impor a sua lei, seja em relação às tradições aristocráticas, seja em relação às tradições operárias. O processo é evidente num conjunto largo de fenómenos sociais: hábitos de alimentação, de consumo, defesa dos direitos dos animais, consciência ecológica, a importância dada à cultura, a defesa da diversidade das opções sexuais, a defesa dos direitos das crianças, etc. Esta sensibilidade burguesa é, porém, quase sempre muito estreita. É com dificuldade que a encontramos, por exemplo, na luta pelos direitos de saúde, de educação ou do trabalho. A existência de hospitais privados, escolas privadas, empregos assegurados e bem remunerados, afasta estes grupos de preocupações tão comezinhas. Sabemos bem que a maior parte dos nossos políticos representa os interesses desta sensibilidade social.
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