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Lars Von Trier não é um cineasta que provoque unanimidades. Em relação à sua obra as opiniões quase sempre se dividem entre os que gostam muito e os que não gostam nada. Devo dizer que me encontro entre os primeiros. Independentemente das opiniões, Von Trier tem uma vantagem que vai rareando: os seus filmes provocam a discussão, não apenas a estritamente cinematográfica, mas a que remete para a forma como o realizador pensa e discute, o mundo e a vida. Dir-me-ão que estas duas dimensões, já que falamos de um filme, são inseparáveis, não podendo ser analisadas de per si. Certamente. Porém, por manifesta incapacidade de discutir convenientemente a primeira, gostava de cometer o lamentável sociologismo de me centrar na segunda, onde apesar de tudo, navego com maior facilidade. Têm os media salientado até à náusea, ideia para a qual o próprio Von Trier terá contribuído, que Dogville é sobre os Estados Unidos América. Na realidade, a acção do filme decorre numa pequena aldeia norte-americana, durante os difíceis anos da depressão que se seguiu à crise de 1929. A inserção histórica e espacial não encerra, porém, o significado da obra. Estou em crer que a sua moralidade, e Von Trier é um cineasta indiscutivelmente moralista, persegue uma dimensão universal. Claro que esta história moral vai-se adequando com maior ou menor exactidão às situações históricas em que vivemos. Nesse sentido, a crítica feroz inerente ao filme atinge com precisão o establishment da dominação geo-política quotidiana, que tem como centro o Estados Unidos da América.
Von Trier montou uma fábula, moral como todas as fábulas. A obra é uma montagem artística da sua tese. A pequena aldeia americana é o espaço desta demonstração. Von Trier assume isso. O filme é contado no terreno da fábula, os cenários são desenhados no chão, as casas não têm paredes, e o espaço remete obviamente para o teatro e para o exercício da encenação. A própria direcção de actores reenvia para uma dimensão teatral. Neste contexto «artificial», sobressaem as palavras que são ditas, a narrativa que é contada e, em último caso, a inevitável moralização da história. A fábula e o conto, embora géneros substancialmente diferentes, têm uma inspiração popular, no seio da qual a forma de contar está sempre ao serviço de uma moral, de algo que se quer demonstrar. Claro que a evolução do campo arte no caminho invío da autonomização sanciona este tipo de dispositivo que sacrifica a forma ao conteúdo, o mostrar ao demonstrar. A reviravolta formal, e ai Von Trier defende-se habilmente, surge pelo facto da construção da demonstração ser absolutamente original do ponto de vista cinematográfico, já que importa de outros materiais artístico o modo de contar. Von Trier é acusado de ser um manipulador, mas expõe de forma clara os mecanismos da sua manipulação. Nada está escondido. Trata-se de uma fábula. Resta aos seus detractores protestarem. Numa discussão, há formas diferentes de colocar as questões, mas se estas existem, proporcionam respostas. Von Trier quer discutir, mas não quer discutir apenas as formas cinematográficas, quer discutir a vida.
O filme de Von Trier é sobre a comunidade. A comunidade isolada. Uma aldeia pobre, algures nas Montanhas Rochosas, recebe a visita atribulada de uma estranha. Um esquema típico do cinema clássico americano: a harmonia do espaço vai ser quebrada pela nova personagem, está lançado o mote da narração. Grace, o nome da personagem interpretada por Nicole Kidman, foge de um grupo de gangsters. Um dilema assombra a comunidade de quinze indivíduos que habita Dogville: receber ou não receber Grace. Em nove capítulos e um prólogo, Von Trier, com a ajuda fundamental da narração de John Hurt, conta a história da relação de Grace com a comunidade. A recepção temerosa deu lugar à integração harmoniosa. Mas o constante assédio das forças policiais que entretanto procuravam Grace atormenta a comunidade. Aos poucos, esta vai exigir que Grace pague a sua protecção. O pagamento, inicialmente em horas de trabalho, vai extremar-se até à mais aberrante exploração sexual, uma situação conhecida e legitimada por toda a comunidade.
O modo como Von Trier trata os habitantes de Dogville é cruel, mas sobretudo ambíguo (já o olhar de Steinbeck sobre a América da depressão, em As Vinhas da Ira, expressava essa ambiguidade). É possível que a simpatia, que o humor e mesmo certa humanidade sejam compatíveis com o comprometimento individual num colectivo mecanicamente atroz? A caracterização bárbara de um conjunto de pessoas pobres e simples levanta evidentes problemas político-filosóficos. Choca, por exemplo, com a mitologia que a esquerda construiu sobre o povo, uma entidade intrinsecamente boa acossada por uma exploração milenar que evoluía e vários estádios. Por outro lado, rejeita a concepção oposta, típica da direita, que olha para as divisões entre os indivíduos como substâncias, “ele é assim porque é” ou, numa elaboração mais liberal, “ele está assim porque não teve o mérito de conseguir estar melhor”. A maldade, que aliás só consegue identificar como tal quem foi educado a interpretá-la dessa forma, é fruto da normalidade das circunstâncias particulares que rodeiam aqueles indivíduos. Só condena os habitantes de Dogville quem não compartilha a moralidade dos seus actos. A maldade, que pode conviver com os “bons sentimentos” faz parte de uma ética particular nascida das circunstâncias. Isto faz-nos regressar à ideia de comunidade. A transformação de uma sociedade tradicional numa sociedade moderna e industrial foi estudada por um conjunto de autores que são considerados hoje fundadores fundamentais do pensamento social. Tonnies falou da passagem de um estado “comunitário” a um estado “societal”, Weber da transição de uma sociedade caracterizada por “dominação tradicional” para uma sociedade onde vingava uma “dominação racional e burocrática”, Durkheim, por sua vez, falou da passagem de uma sociedade dominada por uma “solidariedade mecânica” para uma sociedade definida pela sua “solidariedade orgânica”. Marx, fora daquilo a que o marxismo veio a chamar de sociologia burguesa, antecipou, que à dissolução de uma ordem tradicional efectuada por uma burguesia revolucionária, se seguiria uma revolução proletária. Com evidentes diferenças entre estes autores, todos descrevem a destruição paulatina de uma sociedade tradicional, rural, isolada, comunitária e profundamente desigual por uma ordem moderna, burguesa, industrial e urbana onde o indivíduo se autonomizava das normas prevalecentes da tradição e do costume. Na cidade, espaço da mistura e da liberdade, o indivíduo ia enfrentar outra ordem não menos desigual; Sabemos quanto é perigoso fazer previsões em história. É pouco líquido que, mesmo nos países mais modernos e industrializados, certas lógicas decorrentes de um contexto tradicional tenham desaparecido. O tipo de circunstâncias sociais que enformam um contexto comunitário, rígido, pouco cosmopolita, não são monopólio de um tempo ou de um espaço. É por isto que penso que o filme de Von Trier não é sobre a América, mas acerca dos efeitos preversos de um totalitarismo comunitário que manieta um indivíduo que mecanicamente segue as regras da comunidade sem lhes conseguir responder. Eram assim os habitantes de Dogville. As normas de um colectivo que subjugava completamento o indivíduo, que se limitava a representar um papel definido pela comunidade, eram tão coercivas que ninguém ousou, perante as maiores iniquidades, pô-las em causa. A personagem de Tom, o filósofo, é a que mais se aproxima da ruptura mas acaba também por se tornar mais um cúmplice da tragédia. Será que este cenário traçado por Von Trier é assim tão irreal? Tão manipulador? Tão demagógico? Ou será que não é sob o beneplácito da comunidade mesquinha e isolada, tão típica, infelizmente, do Portugal atrasado do brandos costumes e dos chicos espertos, que decorrem um número incontável de pequenas atrocidades. É perante os olhos fechados da comunidade mesquinha e isolada que prospera a violência física e psicológica, sobre mulheres e as crianças, a justiça popular sobre as minorias, o caciquismo, o populismo. Tudo por detrás da aparência respeitável da comunidade. O que se passa por detrás das portas comenta-se. Mas não dá origem a qualquer intervenção. Intervir, mesmo sobre a mais intolerável acção, era romper com o equilíbrio da comunidade. Augusto M. Seabra (Público, 10/10), que considera Dogville o mais repelente filme que viu nos últimos anos, acha que Von Trier foi miserável quando, num travelling para trás mostra como toda a comunidade estava a ser conivente com a violação de Grace. O plano só choca Seabra porque a encenação de Von Trier retira as paredes das casas, as mesmas paredes que tornam publicamente respeitável a hipocrisia da comunidade. Conheci, no Portugal dos anos noventa, alguém a quem um filho de um cacique local, provavelmente embrigado, atropelara mortalmente um irmão de oito anos. O caso resolveu-se com 1000 contos. O dinheiro pagou o silêncio da mãe. A comunidade vendeu o silêncio por nada. Von Trier pode ser chamado de abjecto, pelo hipotético prazer exibicionista com que filma o rosário de Grace. Mas a sua fábula não é assim tão diferente da violência que José Saramago descreve no “Ensaio sobre a Cegueira”. Saramago, outro moralista.
Von Trier descreve circunstâncias, não culpa o indivíduo. A sua lógica relacional está povoada por questões intemporais, como as que decorrem do pensamento religioso. A religião sempre discutiu a condição humana, como o fez depois a filosofia e a arte. Grace, no epílogo do filme, afirma que se tivesse estado no lugar deles – dos habitantes de Dogville - tinha feito a mesma coisa, ou talvez pior. Basta pensarmos no nosso quotidiano para percebermos como esta frase se aplica a tantas situações. É “aquele lugar” que Von Trier critica.
Chegamos então ao final. As características perversas da comunidade de Von Trier não têm um local ou um tempo. Digamos que elas podem, dentro de certas circunstâncias, ser reproduzidas onde e quando quer que seja. A ideia de comunidade é, desta forma, transplantada do América da grande depressão, para outros contextos. O mesmo provincianismo, a mesma estreiteza de vista, a mesma falta de capacidade reflexiva e analítica podem fazer parte de comunidades urbanas e modernas. Aliás, o pessimismo de Max Weber em relação progressiva à racionalização do mundo, à hiper divisão social do trabalho, à autonomização de várias esferas do social, entre as quais a da arte, é bastante compatível com aquela visão. Os que destróem Dogville, matam de forma bem mais moderna e racional, sendo por isso bastante mais perigosos. Mas disso Von Trier falará, estou em crer, noutra ocasião.
E o que é que isto tudo tem a ver com os Estados Unidos da América? O país mais industrializado do mundo, o país mais poderoso e moderno elegeu um governo que decalca na perfeição a lógica de mesquinhez comunitária descrita por Von Trier. No seio da modernidade, nasce o mesmo anti-cosmopolitismo, a lógica maquiavelicamente dualista, a hipocrisia da comunidade que continua a pregar o respeitável, mas por detrás das paredes comete as atrocidades que acaba por legitimar colectivamente. O hiper-individualismo americano é um preconceito colectivo que justifica todo o tipo de iniquidades, reproduzindo as circunstâncias onde as pessoas simples se tornam monstruosas. Neste contexto, Von Trier assume-se, não apenas como um cineasta, mas como um crítico mordaz das sociedades contemporâneas, como aliás já o tinha feito em alguns dos seus filmes anteriores. A sua fábula moralmente demonstrativa é uma tese sobre o mundo. Os guardiões das formas não gostam, mas Von Trier não é apenas um jogador formal, é alguém que pensa o Homem. Não se trata apenas de discutir as formas da arte, mas as formas do Homem. Não se trata apenas de ver os pormenores mais recônditos da árvore, mas a imagem da floresta toda.